domingo, 24 de julho de 2011

Pipa e cerol: brincadeira que mata

Multas pesadas, campanhas de conscientização e o registro de duas mortes: nada é o bastante para extinguir o uso das linhas com cortante em Sorocaba. 
Rodrigo Rainho
Mesmo com dois registros de morte na cidade, com insistentes campanhas de conscientização e a aplicação de multas, as brincadeiras de pipa continuam intimamente ligadas ao uso do cerol em Sorocaba. Somente entre 27 de junho e 18 de julho a fiscalização da prefeitura apreendeu 132 pipas e 114 latas de linhas com cerol. Desde janeiro, 18 pessoas foram feridas. O BOM DIA foi à periferia e, conversando com as crianças e adolescentes, confirmou que as linhas mortais continuam fazendo parte do dia a dia dos adoradores de pipas.
No Jardim Betânia, pelo menos três adolescentes brincavam com pipas e linhas com cerol ao serem abordados pela reportagem. O garoto J.V.O. conta que aos sete anos teve contato com a primeira linha com cortante, apresentada por um amigo mais velho. Hoje com 12, mantém o ritual diário de soltar pipa, sempre com cerol. “A parte mais divertida é cortar a linha dos outros. Procuro soltar sempre em áreas com bastante espaço, até porque sei que posso levar um choque se a linha encostar em um fio de poste.”
Apesar de saber do risco que o cerol oferece às demais pessoas, o garoto parece ignorar o problema. “É só tomar cuidado. Quando a pipa começa a descer eu vou recolhendo a linha. Apesar dela cortar, não deixo chegar perto. Nunca aconteceu nada e nunca machuquei alguém fazendo isso.”
Outro garoto, de 13 anos, afirma que fabrica o próprio cerol. O aprendizado veio de família. “Foi um tio quem me ensinou a fazer. Antes eu achava para comprar em vendinhas, mas faz tempo que não vejo por aí e por causa disso tive de aprender como é que se faz”. O adolescente afirma que em nenhum momento é repreendido pelos pais, que conhecem o seu gosto pelas pipas e pelo cerol. “Meu pai é quem me arruma as latas para eu enrolar a linha.”
Marcelo Micos, 37, técnico de ótica e optometria, que também brincava com o filho Caíque no campo de futebol do Jardim Betânia, diz que orienta o menino a não usar o cortante na linha, mas admite que nem sempre o conselho funciona. “É coisa de rua. Não depende tanto da nossa educação. Os pais não têm culpa. Cabe aos garotos respeitar a lei.”
A Vila Angélica e o Jardim Botucatu são os bairros campeões de flagrantes de uso de cerol nesse ano. Desde o começo das férias, 14 adolescentes já foram flagrados.
Aplicação de multas já acumula quase R$ 80 mil
A Lei Municipal nº 8.471, de março de 2008, determina que quem for flagrado utilizando cerol está sujeito a multa no valor atual de R$ 1.216,71. Só nesse ano já foram aplicadas 65 multas, que totalizaram R$ 79 mil de prejuízo para os infratores maiores de idade e para pais de adolescentes que usam cerol,
Além disso a legislação prevê que menores que estejam portando cerol sejam encaminhados à Vara da Infância e da Juventude. O não pagamento da multa ou reincidência podem resultar no encaminhamento do adolescente à Fundação Casa , onde estão internados menores autores de delitos que vão do vandalismo ao homicídios.
A Secretaria de Segurança Comunitária de Sorocaba iniciou em junho a campanha “Soltar pipa com cerol não é brincadeira” focando a conscientização no período de férias, quando aumentam os incidentes com cortante.
“A meta é acabar com o cerol, com o respaldo da lei”, diz Roberto Montgomery Soares, secretário de Segurança Comunitária de Sorocaba. “A secretaria vai fiscalizar, ainda mais, em dezembro e janeiro, outro período crítico.”
O marceneiro Valdir (que pediu para não ter o sobrenome divulgado), pai de um jovem de 12 anos que foi flagrado usando cerol, acha o valor da multa muito pesado, mas crê que a medida seja necessária. “Botei de castigo, fiz pensar. Acredito que, infelizmente, com criança só se educa assim.”
Pais de jovem morta tentam conscientizar
Solidária e bondosa. Essas são as características mais lembradas pelos pais de Évelin de Araújo Sales, que aos 23 nos foi morta por uma linha com cerol na Rodovia Raposo Tavares. O acidente ocorreu em 9 de julho de 2008. Protagonizando uma campanha contra o cerol recém-lançada pela prefeitura, o casal quer que a tragédia familiar seja uma forma de mexer com aqueles que ainda usam o cortante.
Eva Maria e Benedito Sales acreditam que a conscientização é a melhor arma contra o cerol. “Se pais e autoridades agirem juntos, podemos mudar a cabeça das pessoas. Se não achássemos isso, nem faríamos a campanha”, diz Eva. Apesar de conformada por “Deus ter levado  a filha”, Eva ainda lamenta o acidente que vitimou a garota, que sonhava em casar-se e formar-se em veterinária. Para Benedito, o tempo não apaga a tristeza. “Parece que tudo aconteceu ontem.”
No dia do acidente Évelin saiu do trabalho mais cedo para aproveitar o feriado com a família. No km 97 da rodovia Raposo Tavares ela não percebeu a presença de uma linha cortante enroscada na passarela de pedestres. Atingida no pescoço, ela foi degolada.
Apesar da morte de Évelin ilustrar a campanha, ela não foi a primeira a ser registrada em Sorocaba. Em 2002, em frente à fábrica Drury’s, uma linha matou o empresário Rogério Rangel de Lima, 35.
Notícia publicada na edição de 24/07/2011 do Jornal Bom Dia Sorocaba, nas páginas 1 a 3.